Cientistas propõem sistema alimentar que possa garantir a sobrevivência da população mundial nos próximos anos; Vida e Saúde defende a mesma proposta há oito décadas. Bruna Genaro
Saúde ou doença. Essa é uma escolha diária que fazemos ao colocar os alimentos no prato. Mas e se houvesse uma forma de oferecer mais saúde aos seres humanos e ao planeta por meio da alimentação? Este é o desafio firmado pelos cientistas da EAT-Lancet: propor uma dieta saudável universal de referência.
“Os sistemas alimentares têm o potencial de nutrir a saúde humana e apoiar a sustentabilidade ambiental; no entanto, eles atualmente ameaçam a ambos.” Essa é a afirmação de abertura do Relatório Lancet, um conjunto de considerações de especialistas do mundo todo em nutrição, alimentos e meio ambiente.
Os cientistas acreditam que “nosso sistema alimentar está quebrado e que precisamos consertá-lo rapidamente”. “Certamente os sistemas alimentares atuais se baseiam em fornecer alimentos à população mundial, porém, ainda com grandes impactos no ecossistema desde a produção, o abastecimento e fornecimento à população. Promovem degradação ambiental e colocam em risco a saúde humana”, diz a médica nutróloga do Hospital Adventista de Belém, Giselle Cerejo. O médico nutrólogo, mestre e doutor pela Unifesp Eric Slywitch acrescenta: “Este sistema em que vivemos hoje ameaça o planeta em questão de sustentabilidade, e ameaça a saúde das pessoas.”
A proposta dos especialistas da EAT-Lancet é simples: que a alimentação humana seja baseada em frutas, vegetais, grãos inteiros, legumes e nozes. Que, por outro lado, tenha baixo teor de carne vermelha, açúcar e alimentos altamente processados. Sendo adotada em grande escala, a expectativa é de que a dieta saudável universal de referência seja adequada para o planeta e para os bilhões de seres humanos que habitam nele.
Um sistema doente
Outra motivação da dieta saudável de referência apontada pelos especialistas são a obesidade, a desnutrição e outros riscos à saúde, causados por dietas inadequadas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 2,3 bilhões de crianças e adultos no mundo estão com sobrepeso ou obesidade, e mais de 150 milhões de crianças sofrem atraso de crescimento devido à alimentação inadequada. Além disso, dietas ruins são responsáveis pela morte de 22% dos adultos no mundo.
“O sistema alimentar que temos hoje não está pautado unicamente na saúde física e nutricional; está baseado em muitos interesses econômicos, colocando o agronegócio em primeiro lugar. O sistema prioriza o consumo de carnes, ovos e laticínios como elementos fundamentais de saúde, ocupando um espaço no prato muito maior do que seria saudável”, destaca o doutor Slywitch.
A obesidade é um dos principais fatores de risco para várias doenças não transmissíveis (DNTs), como diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, hipertensão, acidente vascular cerebral e várias formas de câncer. “Os maus hábitos alimentares tornam as pessoas vulneráveis e comprometem a saúde em geral. Se a mudança no prato começar de forma individual, os benefícios serão estendidos globalmente”, espera Giselle Cerejo.
“Grande parte da obesidade e da desnutrição não vem simplesmente da presença do alimento na obesidade ou da ausência do alimento na desnutrição. Muitas pessoas obesas acabam descontando aspectos emocionais na comida. No caso da desnutrição, não é que haja falta de alimentos; a questão é como atuar de forma global na distribuição desses alimentos, para que todo mundo tenha acesso a eles.” Esse também é o desafio do grupo EAT-Lancet apontado por Slywitch.
Um problema ambiental
Para além do prato está a destruição ambiental causada pela dieta onívora. Segundo o artigo científico “Abandonar a carne ou a esperança”, do professor do Departamento de História do IFCH/Unicamp Luiz Marques, no período de 1990 a 2005, “a pecuária foi a causa de cerca de 81% do desmatamento no chamado ‘arco do desmatamento’ brasileiro, incluindo Amazônia, Cerrado e Pantanal. Pouco mais de 10% do desmatamento se deve à agricultura, fundamentalmente à soja, a qual se destina a nutrir, no Brasil e no exterior, sobretudo porcos, frangos e peixes. Portanto, algo próximo de 90% da destruição da cobertura vegetal primária da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal deve-se à dieta carnívora”.
Ele acrescenta: “Nenhuma questão hoje é tão importante para o Brasil, para cada um de nós, quanto esta: há ainda esperança de evitar a ruína final de nossas sociedades, causada pelas consequências dessa destruição: epidemias, secas, inundações, quebras de safra crescentes e cada vez maior insegurança alimentar e hídrica? A resposta categórica é não, se não assumirmos, entre outros compromissos políticos, a responsabilidade de reduzir drasticamente ou mesmo abandonar o consumo de carne”, enfatiza o docente.
A dieta ideal
A dieta essencialmente vegetariana proposta pelos especialistas conseguiria diminuir os efeitos negativos causados pela dieta onívora. “Quando trocamos para outro sistema alimentar em que a base são alimentos de origem vegetal, conseguimos tranquilamente reduzir muito o impacto ambiental e oferecer os nutrientes de que as pessoas realmente precisam. O único ponto delicado consiste em dar um suporte maior à vitamina B12 por meio de algum suplemento. Essa é uma mudança muito mais fácil e barata, e em termos de raciocínio nutricional funcionaria muito bem. A mudança para essa dieta depende do desejo político e do paladar das pessoas”, diz Slywitch.
“É possível, sim, adotar uma dieta universal, mesmo sabendo que diferenças culturais, regionais, econômicas e até mesmo individuais precisam ser consideradas. Uma dieta rica em vegetais, frutas e legumes promove saúde, bem-estar e estabilidade, tanto no indivíduo quanto no planeta”, afirma Giselle. “Será necessário o envolvimento de todos os setores para que essa transformação ocorra e, mais do que isso, de um compromisso de cada um com a preservação do planeta”, acrescenta a nutróloga.
“Entendo que, na realidade, a única forma de alimentar essa quantidade de pessoas no mundo vai ser justamente com esse ajuste para uma dieta o mais vegetariana possível. Não tem como manter esse perfil de alimentação à base de carne, ovos e laticínios para uma população crescente; não há terra para isso, não há sistema agroflorestal e sistemas ecológicos que suportem isso.
Acessibilidade à alimentação saudável
Um dos pontos levantados pelo grupo de cientistas é que a alimentação saudável não é acessível financeiramente a todas as pessoas. Para Slywitch, esse é um erro de percepção “em que as pessoas acham que a alimentação saudável é mais cara. Na verdade, a alimentação saudável é mais barata, porque são excluídos os alimentos processados e usados legumes, verduras, frutas, cereais
– essa é a base da dieta, não precisa nem colocar as oleaginosas, que seria o artigo mais caro dos alimentos in natura”.
Uma iniciativa que facilitaria o acesso da população aos alimentos in natura são as hortas comunitárias. Um exemplo é a Horta Comunitária do Guará, no Distrito Federal, que conta com mais
de 160 voluntários. “A Horta Comunitária do Guará existe no formato atual desde 2017, por meio da revitalização de um espaço público que se encontrava obsoleto nos fun
dos de uma unidade básica de saúde no Guará II. No começo, sob a iniciativa da engenheira ambiental Dahiana Ribeiro, um grupo pequeno de voluntários se reuniu para limpar o mato, capinar, fazer os canteiros e começar a plantar com o objetivo de, por meio da sustentabilidade urbana, contribuir para um mundo melhor com a prática do plantio, da colheita, e da sinergia entre os voluntários”, conta Ana Maria Oliveira, líder de comunicação do grupo.
Os encontros da horta acontecem quinzenalmente com cerca de 30 voluntários que plantam, limpam os canteiros, colhem, lancham e desenvolvem outras atividades, como o artesanato a partir de material reciclado. “O lema da horta é: ‘Quem planta, colhe’; então, a cada encontro cada voluntário que realizou as atividades em grupo leva uma cesta com as hortaliças colhidas no dia. O pessoal da horta também faz doações de cestas de hortaliças para entidades como igrejas, creches e escolas”, explica Ana.
A Horta Comunitária do Guará, que possui um sistema de irrigação por captação de água da chuva, busca promover a produção de alimentação orgânica e o alívio ao estresse. “Acreditamos que a horta contribui para o processo de alimentação saudável porque não utilizamos agrotóxicos, e toda a adubação é orgânica com compostagem realizada no próprio local”, descreve Ana. E acrescenta: “O espaço público que estava ocioso foi ocupado de forma comunitária e solidária para proporcionar bem-estar com segurança alimentar, terapia, educação ambiental e sustentabilidade.”
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