terça-feira, 22 outubro

Para a maioria das pessoas, dormir pouco ou muito por uma noite afeta o dia seguinte. O cérebro reage com lentidão, há dificuldade de raciocinar e é difícil manter a concentração. Pode até acontecer certa confusão mental, como se peças de um quebra-cabeças não se encaixassem. Quando essa falta de sono se torna algo prolongado, produz-se uma espécie de efeito cumulativo. 

Diversos estudos comprovam o dano mental do pouco sono. Um deles, publicado em 2021 na revista científica Nature, concluiu que dormir seis horas ou menos aumenta em 30% a probabilidade de sofrer de Alzheimer e outros tipos de demência – a pesquisa foi feita com quase oito mil pessoas aos 50, 60 e 70 anos. 

Outro estudo, feito na Escola de Medicina de Harvard, publicado em 2021 na revista científica Aging, chegou a resultados ainda mais assustadores: quem dorme menos de cinco horas por noite tem o dobro de chance de desenvolver demência do que aqueles que contam com a média de sete horas de sono. 

E não é só a duração que importa. A regularidade dos padrões de sono pode influenciar nossa cognição – um dos três tipos de função mental, junto com volição, que é a capacidade de fazer escolhas, e afeto que, segundo o filósofo, médico e psicólogo Henri Wallon (1879-1962), refere-se à capacidade do ser humano de ser afetado positiva ou negativamente tanto por sensações internas quanto externas. 

O professor da Universidade de Washington Jeffrey Iliff, pesquisador de sono e saúde, chefiou uma dessas novas contribuições. Cruzando dados do Estudo Longitudinal de Seattle, nos Estados Unidos, ele e sua equipe puderam conhecer melhor a ligação entre a estabilidade dos padrões de sono, a quantidade de sono medida ao longo de 20 anos e a aparição posterior de algum tipo de demência. 

Iliff resume seu principal achado: “Não são as pessoas que vão diminuindo progressivamente suas horas de sono que têm maior risco de perda de capacidade cognitiva. São aquelas que variam muito a quantidade de horas dormidas.” Ele complementa que ainda não são conhecidas as causas dessa forte correlação entre sono instável e dano cognitivo. “É possível que a variação das horas de sono seja, de forma isolada, um fator a ter em conta”, diz. Mas alerta que também pode ser provocada por outros fatores associados a maior risco de demência, como enfermidade crônica, apneia, depressão, etc. 

O segundo estudo sobre padrões de sono e demência, feito por pesquisadores australianos e canadenses, focaliza a constância dos horários. Ir para a cama uma noite às 22 horas, outra às 3 da madrugada, por exemplo, e fazer dessa inconstância uma regra pode provocar um risco maior de sofrer de Alzheimer mais adiante, e outras doenças neurovegetativas. Um desses pesquisadores, da Universidade de Monash, em Melbourne, Austrália, levanta a suspeita de que as doenças cardiovasculares são mais frequentes entre pessoas com padrão de sono irregular. Isso porque tal conduta faz a irrigação de sangue no cérebro funcionar mal, o que se suspeita talvez ajude a explicar o dano cognitivo em longo prazo.

DEMÊNCIA OU ALZHEIMER? 

A quantidade, qualidade e regularidade do sono influenciam na possibilidade de desenvolver enfermidades neurodegenerativas. De acordo com o Ministério da Saúde, a “Doença de Alzheimer (DA) é um transtorno neurodegenerativo progressivo e fatal que se manifesta pela deterioração cognitiva e da memória, comprometimento progressivo das atividades de vida diária e uma variedade de sintomas neuropsiquiátricos e de alterações comportamentais”. Há uma diferença entre Alzheimer e demência, mas é tênue. Ambas não têm cura e trazem prejuízo cognitivo. Uma pessoa com Alzheimer também tem demência, mas somente algumas pessoas com demência têm Alzheimer. “A demência é uma classe de doenças com mais de 150 tipos diferentes, incluin- do o Alzheimer”, explica o neurologista Custódio Michailowsky Ribeiro, de São Paulo. 

Muitas pesquisas sobre sono e cognição concordam que dormir pouco ou de forma ir-regular pode levar à demência. No entanto, algumas evidências indicam que dormir demais, por volta de 9 a 10 horas, também dispara a possibilidade de perda gradual de capacidade cognitiva. Isso foi confirmado em uma análise de dez publicações, editada na revista científica Neuro-epidemiology, de fevereiro de 2017. 

Outra publicação, de 2019, da National Library of Medicine, nos Estados Unidos, estabeleceu em 77% o aumento do risco de demência entre os dorminhocos em relação aos que se mantém na faixa considerada ótima, de 7 a 8 horas. 

Na demência há uma perda real e irrecuperável de neurônios e massa encefálica. É uma mudança mais rápida e precoce do que a que acontece no processo de envelhecimento natu- ral. E até 70% dos que sofrem de demência têm problemas de sono, afirma Sandra Giménez Ba- dia, neurofisiologista clínica do Hospital de Santa Creu i Sant Pau, em Barcelona. 

POR QUE SE DORME POUCO? 

Crianças são particularmente vulneráveis à deficiência do sono que pode levar a problemas de comportamento. E criança que dorme mal tem chance de continuar assim na vida adulta. 

Vários fatores influenciam na duração e na qualidade do sono. Duração insuficiente (menos de 6 horas por noite), sono irregular e pesadelos, distúrbios como insônia, apneia e síndrome das pernas inquietas afetam a saúde durante toda a vida.

No caso da apneia do sono, ela atinge 35% da população brasileira e é desconhecida pela maioria. A pessoa acorda cansada, depois de sofrer diversas interrupções do sono. É quando a passagem do ar pela orofaringe “cola” as paredes do órgão e o indivíduo fica sem oxigenação por instantes. Mais comum em idosos além dos 65 anos, quando os tecidos da orofaringe ficam flácidos, e mulheres na menopausa.

Para Mercedes Mayos, da Federação Espanhola de Medicina do Sono e coordenadora da Unidade do Sono e de Função Pulmonar do Hospital de la Santa Creu i Sant Pau, de Barcelona, um conceito-chave poderia resolver essa aparente contradição: comorbidade. Significa a presença de dois ou mais distúrbios cujos sintomas e mecanismos podem ser difíceis de observar em separado. 

“Pode parecer sem sentido que dormir mui- to seja ruim em nível cognitivo”, diz Mayos. A principal hipótese, explica, é que existam fatores, como depressão e outras comorbidades, que façam essas pessoas dormirem mais. De acordo com o Ministério da Saúde, comorbidade é a denominação dada a um conjunto de causas que agravam uma doença e, dessa forma, podem piorar um quadro clínico. 

Tomar muito café – ou ingerir muita cafeína, em comparação com pouco ou zero consumo é associado ao alto grau de insônia e sonolência diurna. É grande a probabilidade de dormir mal, pouco ou não conseguir pegar no sono. Além da insônia, consumir cafeína – presente não apenas no café – pode causar irritação, dor de cabeça, náusea, taquicardia, tremores de extremidade e até crise de ansiedade.

Mesmo em pessoas que dizem não sentir qualquer efeito, a cafeína influencia na qualidade e na quantidade de sono, ainda que ingerida seis horas antes de dormir, segundo estudos norte- americanos feitos pelo Sleep Disorders & Research Center do Henry Ford Hospital, em 2017, e pela Wayne State College of Medicine, em 2020, alerta Fernanda Gomes de Melo, nutróloga e endocrinologista de São Paulo. 

Se você pensa em parar de ingerir cafeína não espere acabar com a insônia ou melhorar a qualidade do sono instantaneamente. Leva cerca de duas semanas até “tirar” a cafeína do organismo totalmente e colocar o “trem do sono” nos trilhos. Mas vale a pena e você começará a sentir o benefício doze ou catorze horas depois de abandonar a cafeína. 

Você vai perceber a melhora na qualidade do sono e em sua energia. Mais: diminuição da ansiedade e fim da taquicardia (batimento acelerado do coração) são outros benefícios, assegura Fernanda Gomes de Melo. 

Vale a pena saber que a cafeína, substância química que pertence ao grupo das xantinas, está presente no café e em alguns outros alimentos, como erva-mate, chá verde, chá preto, guaraná in natura, cacau e refrigerantes tipo cola e guaraná. 

Outro grupo que deve prestar atenção nos alimentos com cafeína é o dos pacientes com epilepsia. Seu consumo pode estimular novos episódios de convulsão, segundo estudo internacional publicado na revista médica Current Neurology and Neuroscience Reports. Quem tem anemia deve limitar o consumo. Cafeína prejudica a absorção do ferro pelo organismo. Grávidas também precisam limitar a ingestão de alimentos com cafeína. De acordo com o British Medical Journal, de 2008, da também britânica BMJ Evidence-Based Medicine, de 2024, e da norte-americana National Library of Medicine, existe o risco de que essa substância esteja relacionada ao baixo peso do bebê ao nascer. 

NEM MUITO NEM POUCO 

O estudo sobre horários de sono da Universidade de Melbourne também assinala que pode não ser benéfico ter horários de sono muito estritos, sem quase exceções, ir dormir todas as noites na mesma hora e acordar sempre no mesmo horário, sem exceções. Ser muito rigoroso pode sugerir uma vida social limitada demais, algo que não favorece a boa saúde cognitiva. 

Tem mais: um fenômeno descoberto faz apenas uma década ajuda a compreender por que dormir mal (em quantidade e qualidade) vai arriscando nossa cognição. Sabe-se agora que uma das principais funções do sono é a limpeza do “lixo” que vamos gerando no cérebro durante o dia. Se dormimos mal, acumulam-se substâncias que contribuem para a morte dos neurônios, as células do sistema nervoso. Durante o sono, o corpo se reabastece e se restaura por meio do crescimento das células e dos tecidos, enquanto melhora sua habilidade de manter o equilíbrio energético. 

Por essa razão, Mayos defende que o sono seja visto como pilar de saúde pública, como acontece com a nutrição e a atividade física. Isso também consta do artigo publicado na revista científica The Lancet, de outubro de 2023, apelando para incluir o sono nas agendas de saúde pública de todo o mundo. 

Dados do Centro para Controle de Doenças e Prevenção (CDC), nos Estados Unidos, mostram que dormir menos de 7 horas a cada 24 horas pode levar, além de problemas mentais e cerebrais, a infarto, obesidade, pressão alta, risco de diabetes gestacional, entre outros distúrbios. 

Dormir pouco tem sido relacionado a mortalidade cardiovascular. A Academia Europeia de Neurologia e a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhecem o sono como fundamental para a saúde do cérebro – e a Associação Americana do Coração recentemente adicionou a duração do sono como um dos oito fatores essenciais para a saúde cardiovascular – dormir pouco ou mal afeta o coração. 

Também traz risco de obesidade (e suas comorbidades): diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão, colesterol alto, doenças renais graves, doenças pulmonares graves. Vale ressaltar que o doente renal pode ter demência causa-da pela própria insuficiência dos rins, de acordo com estudo publicado na revista PloS One, em maio de 2015, e divulgado pela revista Fapesp. “Um grupo de pesquisadores brasileiros sugere 

ter identificado os mecanismos envolvidos nesse processo. Em experimentos com modelos animais coordenados pelo farmacologista Cristoforo Scavone, do Laboratório de Neurofarmacologia Molecular no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), eles verificaram que o comprometimento da função renal desencadeia inflamações neurais que podem afetar o funcionamento do cérebro.”

Dormir pouco tem sido associado a todas as causas de morte, incluindo inflamação sistêmica, como artrite reumatoide, lúpus, esclerose múltipla e outras doenças graves. A inflamação crônica descontrola “todas as funções do organismo e desencadeia todo tipo de doenças, como câncer, alergias, asma e condições autoimunes”, diz o médico Marcos López Hoyos, presidente da Sociedade Espanhola de Imunologia. 

Dormir pouco ou mal modifica o rumo do metabolismo e do sistema inflamatório, e afeta a massa do esqueleto e dos músculos; osteopenia, definida como baixa densidade óssea, tem sido relatada nesses casos, em especial em pacientes da meia-idade, de acordo com a publicação científica Elsevier, de janeiro de 2021. 

Dormir garante uma resposta imune saudável e equilibrada, incluindo a resposta imune inata: ela é a primeira linha de defesa contra agentes causadores de doenças, os patógenos, como bactérias, vírus, fungos e outros parasitas. E, ao afetar a imunidade, enfraquece o organismo no combate ao câncer, de acordo com a revista The Lancet, de outubro de 2023. 

UM POUCO SOBRE O SONO 

O provérbio irlandês – uma boa risada e uma longa noite de sono são as melhores curas – pode não estar errado. Dormir é um estado complicado na fisiologia, e nós, humanos, passamos cerca de um terço da vida dormindo. Durante o sono acontecem numerosas mudanças no organismo quanto às suas funções. 

A regulação da pressão sanguínea, o batimento cardíaco, as secreções hormonais e a propriedade autoimune, reparação celular, controle da temperatura corporal, restauração da capacidade de memória e cognição – que determina nossa capacidade de aprender e raciocinar –, tudo isso acontece durante o sono. 

Com o passar dos anos, há a tendência de diminuir o número de horas que se dorme. Devem-se levar em conta também algumas mudanças na forma como o corpo regula o ritmo circadiano. Este consiste no relógio interno que ajusta nosso despertar e nosso sono com a claridade diurna e o anoitecer. “Fusos horários como o horário de verão e o trabalho por turnos costumam perturbar os ritmos biológicos de dormir e acordar”, alerta Richard Schwab, médico da Divisão de Medicina do Sono da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. 

Dormimos menos hoje em dia em comparação com as pessoas do passado. Adultos do início do século 20 dormiam em média 9 horas por dia – e nos anos 1980 sete horas por dia. Na média, adultos dormem atualmente menos de sete horas. A privação do sono é reconhecida como problema de saúde dos tempos modernos. 

Podemos sofrer essa privação por diversos fatores. Estilo de vida, estresse, mudança de trabalho estão entre eles. Mas o uso de aparelhos eletrônicos e dispositivos de mídia – celulares, notebooks e internet – tem sido assinalado como culpado de contribuir para a alteração da produção de melatonina, popularmente chamada de hormônio do sono – o hormônio que avisa o corpo que está na hora de dormir. Isso leva a dormir menos. Envelhecer também pode levar a mudanças no sono e em sua duração. 

A recomendação do Instituto do Sono, em São Paulo, “é se desligar do mundo digital de 30 a 60 minutos antes de dormir e, quando precisar utilizar os aparelhos à noite, ajustar as configurações que reduzem ou filtram a luz das telas”. 

Um estudo da Universidade de Haifa, em Israel, liderado pelo professor Abraham Haim e publicado no jornal científico Chronobiology International, em 2017, descobriu que a luz azul das telas de celular, tablets e computador inibe a produção da melatonina, o já mencionado hormônio do sono. Mais: inibe também o aviso de que não estamos no estado de vigília. Com isso, não há a redução da temperatura corporal, um mecanismo natural que acontece durante o sono: a temperatura cai durante a madrugada e volta a subir perto da hora de acordar. 

Lembra de quando era jovem e conseguia pular uma noite de sono e ainda conseguia ir à faculdade de manhã? Já não dá mais para fazer isso sem ficar sonolento e se sentir dez anos mais velho. Dormir (ou não) afeta sua percepção pessoal de idade, segundo estudo da Universidade de Estocolmo, publicado no jornal científico Proceedings of the Royal Society B, de março de 2024. 

Sentir-se jovem não é apenas uma questão de percepção e está relacionado a resultados objetivos de saúde. Tem sido demonstrado que essa sensação está associada a vidas longas e saudáveis. “Posto que dormir é essencial para a função cerebral e o bem-estar geral, dormir tem relação com preservar a sensação de idade mais jovem”, diz Leonie Balter, pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade de Estocolmo. 

A pesquisa da universidade sueca constatou que, depois de dormir pouco, os participantes se sentiram seis anos mais velhos em comparação com noites de sono completas, quando se sentiram quatro anos mais jovens. 

A vantagem de se sentir mais novo, para um adulto acima dos 40 ou um idoso, é se proteger dos efeitos danosos do estresse e contra o declínio da saúde, de acordo com a Associação Americana de Psicologia. Pessoas que se sentem mais jovens têm maior sensação de bem-estar, menos inflamação, menor risco de hospitalização e vivem mais. 

Jurema Aprile

Jornalista 

 

 

 

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