Especialista analisa os efeitos dessa droga que está sendo cada vez mais tratada como inocente. Everton Fernando Alves
Atualmente, sabe-se que a maconha (Cannabis sativa) é a droga de abuso mais utilizada por adolescentes no mundo. Um estudo canadense de meta-análise recém-publicado na JAMA Psychiatry, uma das revistas de psiquiatria mais respeitadas do mundo, analisou o impacto em longo prazo do uso de maconha em 23 mil adolescentes. Os resultados mostraram que os usuários da maconha (em comparação com adolescentes não usuários) tiveram um risco 37% maior de desenvolver depressão na idade adulta, 50% mais chances de pensamentos suicidas também na idade adulta, além de um risco triplicado de tentativa de suicídio na vida adulta.
Estudos anteriores já haviam confirmado que adolescentes entre 12 e 18 anos que fumam maconha com frequência podem sofrer lesões permanentes na inteligência, além de afetar a memória, a capacidade de concentração, e podem desenvolver sintomas psicóticos.
Entretanto, a erva hoje é legalizada em 33 países para fins medicinais ou recreativos, e está no centro do debate de formuladores de políticas públicas e de especialistas em saúde, que tentam pesar os benefícios e malefícios em potencial da droga. Substâncias extraídas da planta são usadas há centenas de anos, no entanto, somente no século 20 é que ela passou a ser criminalizada, uma tendência que muitas nações e estados infelizmente começam a reverter. No Brasil, o uso da droga é criminalizado apesar de existir forte movimento social que busca sua descriminalização.
Em 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD) se posicionaram contra a legalização da maconha, e em um manifesto público assinado elas afirmaram que “a maconha é ainda mais danosa à saúde que o cigarro”. Mas, se não bastasse, há um desconhecimento “do impacto que a maconha pode causar na estrutura psíquica do usuário. A droga, quando fumada, piora todos os quadros psiquiátricos, que já atingem 25% da população, como depressão, ansiedade e bipolaridade”, afirmam.
Cientistas de outros países que também se dedicam ao estudo dos efeitos da droga na saúde mental de jovens recentemente concluíram que “a alta prevalência de adolescentes consumindo maconha gera um grande número de adultos jovens que podem desenvolver depressão e comportamento suicida atribuíveis à droga. Este é um importante problema de saúde pública, que deve ser adequadamente abordado pelas políticas de saúde pública”, afirmam os autores do estudo. Além disso, os autores enfatizam que as políticas de prevenção devem “educar os adolescentes a desenvolver habilidades para resistir à pressão do grupo para usar drogas”. Diante disso, fica a reflexão: Que estratégias usar para auxiliar esses jovens a não irem por esse caminho?
Pensando em esclarecer melhor esse tema para você, leitor, a reportagem de Vida e Saúde conversou com o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, 63 anos, um dos maiores especialistas em dependência química do Brasil (se não o maior), reconhecido internacionalmente por seu trabalho de mais de 40 anos na área. Nesta entrevista exclusiva, ele conta um pouco da sua trajetória e, mais especificamente, sobre como a maconha pode afetar a saúde mental, social e familiar de adolescentes.
Fale um pouco sobre sua trajetória como profissional e pesquisador na área da psiquiatria, mais especificamente sobre dependência química.
Sou formado em Medicina pela Escola Paulista de Medicina (1982), com residência em Psiquiatria pela mesma instituição (1984) e doutorado em Psiquiatria pela Universidade de Londres (Maudsley Hospital, 1994), no setor de Dependência Química. Atualmente sou professor titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordeno a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) da Unifesp. Assessoro o Governo Federal, uma vez que sou o investigador principal do Instituto Nacional de Políticas do Álcool e Drogas, um dos INCTs (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) do CNPq. Em 2014 ganhei o prêmio Griffith Edwards da International Society of Addiction Journal Editors, em reconhecimento pela atuação como clínico, educador e implementador de políticas públicas sobre álcool e drogas. Também sou diretor-presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM).
Foi dentro desse ambiente que me interessei não só pela parte clínica, como também pela interface com as políticas públicas, estando à frente de discussões em qualquer pauta em que vejo que haverá impacto na saúde pública, visando sempre diminuir o uso de substâncias químicas na população. Já participei, por exemplo, das campanhas políticas sobre cigarro, álcool, maconha, cocaína e crack.
Que motivos levam os adolescentes a iniciar o consumo da maconha?
Não há uma resposta simples. Para entender o início do consumo de qualquer substância química é preciso considerar os fatores de risco e os fatores de proteção, a fim de prevenir essa situação. Alguns desses fatores de proteção ao uso, por exemplo, podem ser o fato de os pais não usarem drogas, a criança ou o adolescente viver em um ambiente harmonioso familiar, gostar do ambiente escolar, ir bem na escola ou, se não vai bem na escola, ao menos poder ser amparado, envolver-se com esportes ou atividades artísticas, possuir uma rede social de amigos que não usam drogas, morar em um país com uma cultura que desfavoreça o consumo de drogas, entre outros.
A Islândia, por exemplo, é um país que estabeleceu políticas de prevenção. Já os fatores de risco que fazem com que as pessoas usem maconha podem ser, por exemplo, morar em um país que a legalizou. Temos dados de estudos nossos que revelam que a prevalência de uso entre os jovens no Brasil é de 3 a 5%, enquanto em Denver, no Colorado (EUA), um dos locais em que há mais tempo a maconha foi legalizada, esse número é em torno de 20%.
Outros fatores de risco que podem ser acrescentados são o fato de o adolescente ir mal na escola e não ter convicções religiosas. No fundo, o que vai determinar quem vai usar ou não a maconha é o balanço entre fatores de risco e de proteção.
Qual o impacto da propaganda em relação ao consumo de drogas? E qual a associação do uso de drogas comuns (cigarro, álcool) com o uso específico da maconha?
A propaganda realmente é importante. Não foi à toa que há alguns anos meus colegas e eu fizemos um abaixo-assinado para proibir a propaganda de álcool nos meios de comunicação. A indústria do álcool foi muito virulenta, comprou ou influenciou muito o congresso a fim de engavetar essa questão. Por outro lado, vemos como foi muito importante proibir a propaganda do cigarro, juntamente com todas as políticas que foram feitas em paralelo, para que houvesse a diminuição do número de fumantes no Brasil. Esse número caiu para menos da metade. Havia 30% de fumantes e agora estamos próximos de 10%. Então a propaganda com certeza influencia o comportamento.
No caso específico da maconha, o que influencia, como já tem acontecido nos Estados Unidos e no Canadá, é que as empresas produtoras de maconha usam vários tipos de propagandas (outdoors, redes sociais, lojas) para que a maconha seja percebida como tendo um risco baixo. Foi isso que aconteceu lá nestes últimos vinte anos. Foi uma decisão do George Soros, grande financiador responsável por fazer com que a maconha deixasse de ser uma erva do diabo e passasse a ser uma droga usada para curar doenças ou mesmo consumida pelas vovozinhas. Foi essa mudança de percepção de risco e essa propaganda massiva que estimularam as empresas a ter interesse em entrar nesse mercado bilionário. Com certeza, as pessoas que defendem a legalização da maconha estão ganhando de dez a zero da gente.
Você é contra ou a favor a liberação da maconha?
Sou absolutamente contra qualquer forma de idealização da maconha e qualquer coisa que aumente o consumo de drogas, porque, à medida que aumenta o consumo de quaisquer drogas, aumenta também o custo social, custo de saúde, como já está acontecendo nos Estados Unidos, onde houve um aumento de 3% a 5% para 20% no número de usuários de maconha. O reflexo disso foi o aumento no número de pessoas que não terminam o colegial, jovens usuários tornando-se menos independentes financeiramente, surgimento de problemas de saúde, entre outros. Portanto, a lógica da saúde pública é a de que, na medida do possível, seja diminuído ao máximo o consumo das substâncias químicas. Neste momento, no Brasil, a medida mais acertada foi a do Congresso Nacional de considerar a maconha como “produtos ilegais”. Isso obviamente não muda todo o mercado, pois ele ainda é muito facilitado, mas a sociedade põe um selo no produto ilegal e isso não facilita o consumo mais do que já está sendo facilitado.
Quais os prejuízos do uso da maconha? Há diferença em relação ao impacto da maconha sobre a saúde mental do adolescente, quando comparada a outras drogas?
É preciso levar em consideração que o cérebro do adolescente vai se desenvolvendo principalmente entre os 14 e os 25 anos. Trata-se de um período de amadurecimento cerebral no qual o órgão vai se especializando em um cérebro de adulto. É um período importante e qualquer uso de substâncias químicas vai levar a alguma mudança nessa nova formatação neuronal, que ocorre no cérebro dos adolescentes. O problema é que 70% dos jovens começam a usar maconha exatamente nesse período. Estudos recentes mostram associação entre o uso da maconha e sintomas de depressão, ansiedade, quadros psicóticos, sintomas psicóticos subclínicos (quando não há alucinações, mas há comportamentos bizarros). Além do mais, a maconha prejudica as funções cerebrais, como a memória, atenção, concentração, função executiva (capacidade de pensar, planejar e executar), o coeficiente de inteligência (perda de 7 a 8 pontos de QI), além de o usuário apresentar baixo rendimento profissional (fica adiando tudo que tem para fazer).
A maconha não leva à overdose, ninguém morre por usar maconha, mas tem um prejuízo cognitivo. Outro ponto importante é que não existe a “maconha medicinal”. Esse conceito é errado. A maconha possui mais de 400 componentes químicos diferentes prejudiciais, provenientes da fumaça. Apenas um deles, o canabidiol, que eventualmente, em situações muito específicas e raras, pode ter um efeito terapêutico, mas nem isso ainda está confirmado. E, é claro, a indústria está usando muito esse conceito como propaganda para a legalização e até médicos estão sendo influenciados e estão usando a maconha para terapia, desde autismo até dor nas costas. Isso é um absurdo!
Ao longo dos anos como psiquiatra, você se lembra de algum caso que mais lhe chamou a atenção em relação aos prejuízos que a maconha pode causar na vida de um adolescente?
Como psiquiatra, eu vi vários casos que me mostram um padrão, como, por exemplo, aqueles adolescentes que chegam ao consultório, após o começo do uso de maconha, e começam a dizer que estão desinteressados pela escola e pelo esporte, vão ficando em casa, mudando o tipo de maconha que estão consumindo. O fato é que hoje em dia o jovem não mais usa aquele tipo de maconha “prensado” (a maconha mais comum e mais barata); ele usa uma infinidade de novas formas de maconha cuja concentração de THC (composto da maconha) é muito mais alta. Se na década de 1960 era de 1% a 2%, hoje o tipo da maconha base, que é mais sofisticada, tem cerca de 10% dessa substância, e o tipo Skam tem 20% de THC.
A maconha é um produto em desenvolvimento. Existem vários tipos dela, e é preciso debater isso, pois as pessoas pensam que é a mesma maconha dos anos 1960. Recentemente, atendi um paciente que estava fumando cigarro eletrônico de maconha que tinha uma concentração de THC de 60%, ou seja, é completamente diferente o ato de fumar um cigarro eletrônico com essa quantidade de THC em relação a um “baseado” com 2%. Portanto, a mudança do produto, da fórmula, da concentração é que está fazendo a maior diferença na saúde dos adolescentes e no aumento de prejuízo que esses adolescentes vão ter.
Existe alguma relação entre o consumo de drogas na adolescência e a convivência com pais consumidores?
O uso da maconha por pais de adolescentes é um fator de risco ao predispor o filho a ser usuário. Outro fator de risco é se os pais vivem conflituosamente no lar e se dedicam pouco a entender as necessidades emocionais dos filhos. Isso pode aumentar a chance do uso da maconha por parte do adolescente. À medida que a pessoa entra na adolescência, as influências sociais e culturais são muito poderosas e naturalmente vai havendo um enfraquecimento das relações familiares e o aumento da influência do grupo social no qual o adolescente vive.
Hoje vivemos em uma cultura muito favorável à maconha. Por exemplo, se você entrar na internet verá que 99% das “notícias” que há lá sobre maconha é sobre quão inócua e benéfica ela é. Por outro lado, caso você queira informações médicas verdadeiras, terá que ir a sites médicos, ler e tentar entender os artigos científicos. Isso nenhum adolescente faz e quase nenhum jornalista também faz, porque é uma literatura indigesta, e é preciso ter tempo, energia e vontade para fazer isso.
Atualmente, qual é o efeito do uso da maconha sobre as relações familiares?
A geração de conflitos. Aquelas famílias que têm uma atitude desfavorável ao uso da maconha ou que percebe os prejuízos que o uso da erva já causou nos adolescentes, obviamente pressiona, conversa, ameaça, faz uma série de coisas, e o conflito se arrasta por muito tempo. Enquanto isso, os usuários da maconha vão continuando o uso sem levar em consideração essas fontes de conflito. A família vai perdendo a autoridade a ponto de muitas delas buscarem ajuda externa em grupos de ajuda mútua, quer seja os Narcóticos Anônimos ou os grupos de Amor Exigente. Também podem ajudar profissionais especialistas em dependência química que recebem frequentemente dúvidas das famílias sobre como lidar com um filho usuário de maconha.
A busca por religiosidade (Deus) é um fator que pode proteger adolescentes do vício das drogas? Por quê?
Os valores e a prática religiosa podem ser úteis sob vários aspectos, como a internalização de valores em relação ao que é realmente importante e os desafios de como ser uma pessoa melhor. Independentemente de qual seja a denominação religiosa, a pessoa que abraça a religião quer ser alguém melhor. Além disso, outro fator de proteção é a vida social religiosa, ou seja, as atividades culturais religiosas e grupos sociais de jovens que se voltam para a religião fortalecem coletivamente seus valores, e isso pode ajudá-los a não usar maconha. Agora, se isso vai ser suficiente ou se vai precisar de tratamento é outra história, mas não tenho dúvida de que os valores e a prática religiosa são fatores positivos importantes.
Há algum tipo de interesse econômico por trás daqueles que defendem a legalização da maconha?
É importante salientar que o debate da maconha tem sido organizado por grupos que têm interesses econômicos relacionados às novas empresas interessadas nesse mercado, como, por exemplo, a indústria que criou o cigarro eletrônico. Quase ninguém sabe que quem criou o cigarro eletrônico foi a própria indústria do tabaco, e o cigarro eletrônico vai ser, com certeza, um instrumento para o uso de várias substâncias, não só de nicotina, como também da maconha. Além do interesse das grandes empresas presentes nos Estados Unidos, e principalmente no Canadá, no qual se localiza a maior empresa de maconha do mundo.
Quer um exemplo? Se analisarmos a bolsa de valores de Nova York, será possível ver que já existe um valor acumulado muito grande nessas empresas. Portanto, sim, há interesse econômico. Quanto às pessoas que defendem a legalização da maconha alegando que ela vai acabar com o crime organizado (o tráfico), isso não é verdade. É ingenuidade! Isso não aconteceu em Denver, no Colorado (EUA), pelo contrário, o tráfico aumentou após a legalização. Mas fato é que no Brasil as empresas vendedoras de maconha e as figuras públicas que defendem a legalização dela têm influência dessa lógica de lucro pela indústria da maconha. Aqui vemos claramente uma decisão de mercado que tem impacto na saúde pública e pode afetar gerações de brasileiros.
Everton Fernando Alves é Mestre em Imunogenética pela UEM
Referências:
1. Gobbi G, et al. Association
of Cannabis Use in Adolescence and Risk of Depression, Anxiety, and Suicidality in Young Adulthood: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA Psychiatry. 2019 Apr 1;76(4):426-434.
2. Meier MH, et al. Persistent cannabis users show neuropsychological decline from childhood to midlife. Proc Natl Acad Sci U S A. 2012 Oct 2;109(40):E2657-64.
3. Bourque J, Afzali MH, Conrod PJ. Association of Cannabis Use With Adolescent Psychotic Symptoms. JAMA Psychiatry. 2018 Aug 1;75(8):864-866.
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